A Polícia bate, mas não mata

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Encontrei Fransquim durante uma reportagem no Terrenos Novos, pobre bairro na periferia de Sobral, território sob domínio do Comando Vermelho. Fazíamos matéria para reportar a situação dos desvalidos no meio da quarentena imposta pelos governos estadual e municipal.

Para entrar no bairro, vidros abaixados, conforme determinação pichada nos muros e paredes. É padrão, disse o pastor Eziel, que cuida das almas da comunidade. Ele foi a chave para entrarmos naquele campo minado.

Aviso para autoproteção da comunidade. Quer roubar, faça isso em outro canto

Estávamos conversando com os pais, as agruras do dia a dia, enquanto vinha da cozinha o cheiro de peixe que estava a fritar. “A mistura de hoje é uns carazinhos que pesquei ali no açude”, disse o pai, a voz arrastada e um pouco mais alta que o chiar da frigideira.

E aí chega Fransquim, 14 anos, moreno, corpo esguio, só de bermuda, cabelo rente, um pedaço de gente com alma de adulto. Mais que a simpatia do sorriso fácil, chamou atenção uma faca a decorar o cós da calça. “É um punhal”, fez questão de corrigir. “É só pra me defender”, disse de forma blasé, para revelar autossuficiência.

Depois dessa apresentação, ele entra, e a mãe, vencida, diz que “ele sempre me deu trabalho”. E o pastor informa que tinha conseguido interná-lo em uma casa de recuperação. O garoto já fora flagrado cometendo pequenos furtos. Palavra que ele fez questão de realçar, corrigindo o pastor. “Roubo é uma palavra mais pesada”, disse com ar de sabedoria.

Ele voltava do quarto e mostrou sem cerimônia, e até com orgulho, uma balinha de maconha e um saco de fumo. “Sou usuário desde os sete anos”. Ele não estuda, faz tempo. Não tem escola aqui, tem três, mas em território comandado por gangues inimigas. “Eles lá de dentro botam a gente pra correr”. Lá de dentro é quem mora no vizinho Conjunto Nova Caiçara.

Punhal, bocado de fumo e uma balinha de maconha, o arsenal de Fransquim

Sem estudar, revelava inteligência incomum e liderança nata, voz altiva, muito mais que a do seus pais.
O pastor pergunta se ele não quer voltar a uma casa de recuperação. “Só se for de muro alta, a última tinha muro baixo, e eu fugi”. Perguntei-lhe por que fugia, já que era um local onde ele se recuperaria. “Abstinência, na hora da abstinência”.

Já conseguiram pra ele uma casa de proteção a pessoas que são ameaçadas, mas a mãe teria que ir junto. “Prum local que eu nem sei, prefiro minha vida perto de minhas amigas” explicou a mãe a recusa.

Foi à cozinha, pegou a comida num pote de plástico, ainda reclamou – “nem torrou” – e foi saindo, certamente para repartir o almoço com uns camaradas. O pastor ainda tentou evitar que ele saísse armado, pois a Polícia poderia abordá-lo. “Não tenho medo da Polícia. A Polícia bate, mas não mata. Os lá de dentro bota pra matar. É só pra me defender”.

A guerra entre facções chega aos muros, uma querendo se sobressair à outra

E assim é a adolescência de Fransquim (nome atribuída para proteger sua identidade), menino simpático, líder e muito inteligente. Se nada for feito para salvá-lo, vai usar esses atributos para a criminalidade. Pelas estatísticas, deve ter mais quatro ou seis anos de vida.

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