Inep muda gabarito do Enem 2020

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A alternativa dada como certa dizia que mulher negra que não quer alisar o cabelo tem argumentos ‘imaturos’. Outra questão mencionava ligação que o Google faz entre nomes de negros e sugestões de fichas criminais. Depois da polêmica nas redes sociais, Inep diz que foi encontrada inconsistência no material.

O gabarito oficial do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020, divulgado na quarta-feira (27), foi alterado após dois erros:

  • apontava como correta uma alternativa que dizia que a mulher negra que não quer alisar seu cabelo tem argumentos “imaturos”;
  • dizia que o Google associava nomes de pessoas negras a fichas criminais por causa da “linguagem”, não do “preconceito”.

Após ser acusado de racismo nas redes sociais, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que organiza a prova, corrigiu o gabarito e disse que foi encontrada “uma inconsistência no material”.

“A autarquia verificou que uma modificação feita no gabarito após o retorno das provas para o Inep não foi salva no banco de dados. Em função disso, a área técnica providenciou uma revisão no material e o instituto já disponibilizou as versões corrigidas no seu portal”, afirma a nota.

A primeira pergunta em discussão faz parte da prova de inglês e traz um trecho da obra “Americanah”, da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichi. No excerto, duas mulheres negras conversam em um salão de cabeleireiro. A profissional, Aisha, recomenda que a cliente, Ifemelu, alise os fios para “ficar mais fácil de penteá-los”. A jovem não aprova a ideia: diz que gosta do seu cabelo natural, “como Deus o fez”.

Em seguida, há o trecho, em tradução para o português: “Não é difícil pentear se você hidratar corretamente “, disse ela [Ifelemu], assumindo o tom persuasivo que ela usava sempre que tentava convencer outras mulheres negras sobre os méritos de usar seu cabelo natural”.

O Enem, então, questiona o que os argumentos da cliente representam. No gabarito extraoficial e no programa de correção (veja vídeo abaixo), professores apontam que a alternativa correta seria a “c”: “revelam uma atitude de resistência”.

Mas, segundo o Inep publicou inicialmente, o certo seria “demonstram uma postura de imaturidade” (alternativa “d”). Depois do questionamento, o gabarito foi corrigido para “c”.

Tatiane Ribeiro, coordenadora nacional da rede de cursinhos populares Emancipa, diz que manter o cabelo natural representa, sim, um ato de resistência contra um padrão da sociedade.

“Eu passei pela transição capilar [processo de reassumir o cabelo natural], depois de fazer alisamento por muitos anos. Muitas pessoas disseram que eu perderia oportunidades de emprego por causa do meu cabelo. E sei que isso aconteceu”, conta.

“Reforçar esse tipo de preconceito no Enem é dizer para meninas que conseguiram se empoderar que elas precisam alisar. É reforçar o estereótipo”, diz. “Já temos o Enem mais injusto da história, com alunos que não tiveram aula durante o ano. Aí, ainda vemos uma resposta como esta?”, questiona.

Sonia Guimarães, primeira mulher negra a se tornar doutora em física no Brasil e a ser professora no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), acredita que há um retrocesso.

“O racismo forçou as mulheres – inclusive as negras – a acreditarem que o cabelo crespo é feio. Isso não é questão de imaturidade. O Inep deveria pedir desculpas”, afirma.

“Isso mexe comigo em um sentido pessoal mesmo. É um exame nacional, com várias meninas negras fazendo a prova. Fiquei com raiva. São mais de 500 anos ouvindo que o crespo não é bonito. É claro que a resposta certa é sobre resistência.”

A candidata do Enem Marcela Peixoto, de 18 anos, também afirma que a alternativa apontada inicialmente pelo Inep como correta é racista. “Ela reproduz um discurso que vem sendo feito há anos: coloca as escolhas da mulher negra como imaturidade. Pega toda a pressão estética que a gente sofre e reduz a isso. Fiquei realmente abismada ao ver o gabarito”, diz.

Além da pergunta sobre alisamento de cabelo, outra também foi motivo de debate por racismo. Na prova de linguagens, uma questão menciona que, ao digitar nomes comuns entre negros dos EUA, a chance de os anúncios automáticos oferecerem checagem de antecedentes criminais pode aumentar 25%.

A pergunta é: “O texto permite o desnudamento da sociedade ao relacionar as tecnologias de informação e comunicação com o(a)…”. A resposta, segundo o gabarito extraoficial, é: “preconceito”. O Inep, inicialmente, havia indicado que a resposta certa seria “linguagem”. Depois, corrigiu o gabarito.

“Isso tem nome: racismo. A questão tinha mesmo de ser cancelada. É o primeiro passo para se retratar diante da comunidade negra”, diz Marcela Peixoto.

Veja as questões:

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