Silveira, o quase mártir da liberdade de expressão

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Nenhum direito é absoluto. Essa platitude tem servido para mitigar toda sorte de direitos, até mesmo os fundamentais, como a liberdade de expressão, insculpido na Declaração dos Direitos Humanos (Art. 19). Ao ser preso e condenado por crime de opinião, deputado federal Daniel Silveira, vítima de injustiça legal, seria o primeiro mártir da liberdade de expressão no Brasil. Mas escapou do suplício pela indulgência presidencial.

A liberdade de expressão não serve de escudo para cometimento de crimes, óbvio. E a legislação tem remédio para os excessos que se ramificam no Código Penal como calúnia, difamação e injúria, assegurando às vítimas indenização pelo dano material ou moral. Não há previsão de prisão. Se a Constituição garante a liberdade de expressão ao cidadão comum, ela é alargada aos parlamentares, com a imunidade do mandato.

O processo que chegou, em tempo recorde, à condenação do parlamentar é cheio de novidades e ineditismos, maculando em todas as fases o tal do devido processo legal. E não foi fruto de algum juizeco (na expressão de Renan Calheiros). Foi obra e graça do STF, quase por unanimidade, a casa da segurança jurídica, e do conservadorismo. Mas agora é pura vanguarda. Não apenas por ter condenado, pela primeira vez, um parlamentar no exercício do mandato.

O nascedouro do inquérito, de ofício, já deixou o mundo jurídico perplexo. Sem provocação da Procuradoria da República ou de autoridade policial, o STF abre o inquérito e escolhe o relator, sem sorteio. O STF alargou o conceito de sua territorialidade. A Lei lhe assegura abertura de inquérito contra crimes cometidos na sede do STF, cuja extensão vai até o estacionamento, no máximo. A nova interpretação amplia o espaço para qualquer local.

Depois de expandir o espaço, tal qual um Einstein revisitado, o STF alveja o sistema acusatório, que distingue as atividades de acusar, defender e julgar. A Corte figura como vítima, acusador e julgador. Basta ser amigo/inimigo da vítima (ou do acusado) para um juiz ser considerado suspeito. Sendo o acusador/julgador uma só pessoa, o juiz se torna algoz, e a imparcialidade balança na forca sobre o cadafalso armado em uma das esquinas da Praça dos Três Poderes.

A essas barbaridades conceituais, o inquérito, de nascedouro espúrio, pariu outras monstruosidades, que o mundo judiciário chama de teratologia, termo emprestado da Medicina. O constituinte blindou o parlamentar – representante do povo – , de forma a tornar quase impossível sua prisão, que só pode ocorrer em flagrante e por crime inafiançável. Não há prisão preventiva contra deputados.

Alexandre de Morais não se fez de rogado diante de tantos óbices para capturar aquele que lhe chamara de cabeça de ovo e que manifestara o desejo ver o povo pegar o careca pela gola e jogar numa lixeira. Atiçado pelas aleivosias, Morais passou a desfilar seu plantel de novidades. Começou por determinar a prisão de ofício, coisa rara. O comum é agir por provocação da Polícia ou no MP. Mas o princípio da inércia é coisa para preguiçosos, deve ter pensado.

Para burlar a lei, inventou um flagrante continuado (de vídeo) e expediu um mandado judicial, talvez o único mandado de prisão a ser usado num flagrante. Prendeu de noite, quando, muitas vezes, vimos a notícia de policiais em campana, à espera do raiar do dia, para dar voz de prisão a algum bandido. Nada dessa tradição foi respeitada, e o parlamentar foi enjaulado.

O deputado não poderia continuar preso, pois não há prisão preventiva. Mesmo assim, foi para a cadeia. Depois, passou a usar tornozeleira, alternativa à prisão preventiva (que não se aplica a ele). E de novo preso por, supostamente, descumprir a ordem de usar a tornozeleira.

Além da tornozeleira, o deputado deveria obedecer a várias outras medidas. Entre elas, não dar entrevista, não usar as redes sociais. Na verdade, o exercício do mandato foi mitigado. É também uma afronta do Art. 19 da Declaração dos Direitos Humanos: direito a liberdade de expressão “inclui a liberdade de, sem interferência, procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios”.

Afinal, qual o crime do deputado? Palavras. Duras, repugnantes, execráveis. Mas palavras. Bravatas, como qualificou Kassio Nunes, ministro que o inocentou (o único) em seu voto revisor do processo. E aqui o STF matou por afogamento o Art 53 da CF: o parlamentar é inviolável por QUAISQUER palavras, votos e opiniões. Os togados tentaram interpretar o que já é muito claro. Segundo eles, só se aplicaria no exercício do mandato.

No meio do caminho, criou-se outro problema jurídico, que favoreceria o acusado. A Lei de Segurança Nacional, lixo autoritário em cujos crimes o deputado fora enquadrado, foi revogada. O normal é a perda do objeto, com arquivamento do processo. Qual nada! Não se deram por vencidos, nem mesmo a PGR, que apontou a lei sucedânea para dar continuidade à incriminação do deputado. Temos uma nova lei usada para fatos anteriores. Sabe aquele conceito de que a lei não retroage para punir? Esqueça.

Ah, mas as palavras do deputado foram além, era discurso de ódio, atentava contra o estado democrático. Ora, ora. Atos antidemocráticos, expressão usada para apelidar o inquérito, podem alcançar as palavras? A garantia da liberdade de expressão não tem como fito proteger as palavras doces, mas as mais agressivas, por mais nauseabundas.

Os regimes autoritários não aceitam discursos contra si mesmo, os inimigos do regime costumam ser punidos com dureza. A democracia aceita até que indivíduos preguem contra ela e advoguem o autoritarismo, como fazem os membros de partidos comunistas, que defendem o soerguimento de uma ditadura. Quando a democracia não aceita discursos que lhe são contrários, já não é democracia, já foi infectada pelo vírus do autoritarismo.

Quando se usa do autoritarismo para defender a democracia, quando se afronta a Leia para garantir a Constituição, já não temos democracia, tampouco estado democrático de direito. Em boa hora, veio o indulto de Bolsonaro para livrar o deputado da perseguição judicial. É uma afronta ao STF? Pode ser. Mas quem afrontou primeiro? Temos um presidente que luta pela liberdade de expressão, e um STF que pugna por encarcerá-la.

Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz

(Hino da proclamação da República)

Artigo 19
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

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