Como celulares redefinem a paternidade na era digital

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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O contato físico e o diálogo, segundo o neurologista, são cruciais para o desenvolvimento emocional das crianças

No centro de Brasília, entre o cheiro de pipoca e o barulho da cidade, Gil Lopes, de 58 anos, mantém os olhos atentos ao movimento das pessoas e, mais ainda, aos sons que chegam pelo fone de ouvido. Pipoqueiro e pai de seis filhos, Gil transformou o simples ato de escutar mensagens de áudio em um ritual que alivia as saudades dos filhos espalhados pelo país. “Quando eu chegar da faculdade, eu ligo”, promete uma das vozes que lhe trazem paz. Para ele, nenhuma mensagem é trivial. “Tudo o que vem deles é importante”, diz, com um misto de orgulho e melancolia.

Radicado em Brasília há anos, Gil mora na região administrativa de São Sebastião, e aprendeu a enxergar no celular um aliado para manter o vínculo familiar. Ele, que um dia temeu os efeitos da tecnologia, hoje a vê como uma ferramenta vital para o seu trabalho e, principalmente, para sua tranquilidade emocional. “A vida deles é corrida”, lamenta, enquanto espera pela próxima mensagem, uma conexão digital que, em suas palavras, “garante a tranquilidade para trabalhar”.

A relação de Gil com a tecnologia reflete uma mudança mais ampla nas dinâmicas familiares contemporâneas. A evolução dos celulares e da internet trouxe novas formas de proximidade e distanciamento entre pais e filhos, segundo especialistas. Para o neurologista pediátrico Eduardo Jorge Custódio da Silva, membro do Grupo de Trabalho Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a tecnologia, quando bem utilizada, pode ser um elo poderoso. “O pai pode estar viajando e é possível vê-lo por um vídeo. A tecnologia pode ser fundamental”, afirma. Ele destaca iniciativas como o site “Esse Mundo Digital”, que busca conscientizar sobre o uso ético e saudável da internet.

Entretanto, essa nova proximidade virtual não está isenta de desafios. Sandra Rúbia da Silva, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), observa que o uso do celular pode tanto aproximar quanto afastar, dependendo da maneira como é integrado à vida familiar. “Na minha pesquisa, a gente conseguiu observar que os pais veem que o uso do celular está atrelado à preocupação com a segurança dos filhos”, explica. Ela ressalta que as redes sociais têm colocado as relações familiares em um novo patamar, permitindo trocas de afeto e saberes de formas antes inimagináveis. Contudo, alerta para o fenômeno das “magoas digitais”, como o caso de pais que não recebem homenagens nas redes sociais no Dia dos Pais, uma omissão que pode causar distanciamento emocional.

Além da questão afetiva, o uso excessivo de telas, especialmente durante os momentos de convivência familiar, é motivo de preocupação. Eduardo Jorge Custódio da Silva, da SBP, ressalta que o uso indiscriminado de dispositivos móveis pode criar um distanciamento físico e emocional entre pais e filhos, mesmo quando estão sentados à mesma mesa. “A internet e as telas podem ser capazes de aproximar os distantes e, em compensação, afastar quem está próximo”, alerta. A SBP elaborou o documento científico “Menos Telas e Mais Saúde”, que recomenda uma maior interação física e diálogo entre pais e filhos, como forma de evitar que a tecnologia se torne uma barreira ao invés de uma ponte.

O contato físico e o diálogo, segundo o neurologista, são cruciais para o desenvolvimento emocional das crianças. “É importante sair com as crianças e deixar o celular para trás”, aconselha, sugerindo momentos de “detox” tecnológico para fortalecer os laços familiares. A dependência digital é uma realidade que preocupa especialistas, pois pode levar a prejuízos sociais, escolares e emocionais, necessitando de apoio psicológico e familiar para ser superada.

A psicóloga Leila Cury Tardivo, da Universidade de São Paulo (USP), reforça a importância de os pais utilizarem a tecnologia de forma construtiva, promovendo a aproximação e o diálogo. Coordenadora do projeto social Apoiar, em São Paulo, Leila observou, desde a pandemia, a crescente necessidade de acolhimento entre crianças e adolescentes. “Os pais não são obrigados a resolver tudo. Mas a aproximação e o diálogo ajudam muito”, diz, destacando a importância de respeitar as diferentes constituições familiares e as particularidades de cada faixa etária.

Essa visão é compartilhada por Américo Oliveira, de 63 anos, agricultor e servidor público aposentado. Pai de seis filhos, Américo mora na área rural do Gama, no Distrito Federal, e faz do celular um companheiro inseparável enquanto espera o ônibus para casa. Qualquer “oi” que venha dos filhos é suficiente para alegrar seu dia.

Entre a pipoca de Gil e a espera paciente de Américo, o que se percebe é que, em meio às telas e à correria do dia a dia, o desafio da paternidade ativa na era digital continua a ser o de encontrar equilíbrio. Entre mensagens e vídeos, há sempre a necessidade de um abraço real, de uma conversa sem intermediários, de um tempo dedicado exclusivamente ao estar junto, para que a tecnologia seja uma aliada e não uma substituta das relações humanas.

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