Elite médica no Ceará: imperícia ou perversão seletiva?
A ideia desse texto é propor uma reflexão ao leitor acerca de ocorrências no estado e no município de Sobral
A questão da elite médica no Ceará, particularmente em Sobral, reflete um dilema complexo entre imperícia e uma perversão seletiva do discurso humanitário, que esconde intenções voltadas ao lucro e à manutenção de uma estrutura elitista. A família Ferreira Gomes, há décadas no poder do estado e de Sobral, perpetua uma “dinastia” que utiliza pautas progressistas enquanto opera em um contexto que prioriza uma elite política e econômica. Lia Gomes, médica e figura pública, faz parte desse grupo. Ela é conhecida por expressar apoio à causa feminista, da pobreza e pela defesa de um sistema de saúde acessível, sobretudo às mulheres, mas sua retórica contradiz sua trajetória pessoal e social. Filha de um ex-prefeito de Sobral, esse que também concluiu seus estudos no Rio de Janeiro em um tempo onde muitos não tinham condições de, sequer, sair do Ceará ou mesmo ocupar a UFC, e parte de uma elite com acesso a educação de qualidade e status privilegiado, Lia Gomes tenta ocupar um espaço de representatividade que não vivencia, enquanto uma mulher de elite, regada pelas mãos de diversos homens, reforçando leve contradição social, nepotismo e familismo, e causando certo desconforto representativo em um estado onde as desigualdades são palpáveis.
Esse paradoxo se torna ainda mais evidente com as condições da Santa Casa de Sobral. A unidade hospitalar, um centro de referência no estado, vive um histórico de intervenções e problemas de gestão que refletem não só a incapacidade de fornecer saúde pública de qualidade, mas também uma falta de responsabilidade dos gestores públicos. Embora algumas melhorias tenham sido alcançadas, como a reabertura de serviços e o investimento em infraestrutura, a situação permanece frágil, especialmente com a recente prorrogação da intervenção na instituição até 2025. Esse prolongamento suscita críticas sobre a eficácia de tais medidas, especialmente em um contexto onde o acesso à saúde de qualidade é mais um discurso do que uma realidade para a população vulnerável da região.
A postura da família Gomes é questionável e tem atraído críticas que ecoam em esferas políticas e sociais. Ivo Gomes, irmão de Lia e atual prefeito de Sobral, encabeça um grupo que parece reproduzir um ciclo de poder característico de oligarquias políticas, onde os mesmos sobrenomes dominam as administrações locais há gerações, sem necessariamente trazer mudanças substanciais para a população. A longevidade dessa influência, embora revestida de um verniz progressista, frequentemente se traduz em práticas que mantêm uma lógica de poder e privilégios, contradizendo o discurso de inclusão e desenvolvimento que a família promove. Em relação à saúde, essa hipocrisia se torna mais evidente, pois, enquanto os líderes exaltam a saúde pública, muitos deles são favorecidos com tratamentos exclusivos e condições especiais, numa atitude que se alinha mais ao elitismo neoliberal do que a uma prática socialista ou inclusiva de fato.
A medicalização e a elite médica se tornam ferramentas de alienação e controle, e essa prática reverbera na concentração de riqueza no estado, que persiste mesmo em um cenário político que supostamente deveria combater essas desigualdades. Drauzio Varella também critica a forma como a elite médica brasileira, frequentemente desconectada das necessidades reais da população, age para se beneficiar enquanto a estrutura da saúde pública permanece subdesenvolvida e excludente. No caso de Sobral e do Ceará, a classe médica parece mais interessada em manter suas posições de privilégio, reforçando o abismo entre o discurso de justiça social e a realidade das políticas implementadas.
Sadie Plant, teórica que estudou a conexão entre tecnologia e alienação, falava sobre como as instituições se tornam máquinas de poder que servem a interesses próprios, sob o manto de valores nobres. No Ceará, essa teoria se aplica dolorosamente à elite médica, que prega a ética e a vocação ao público, mas cuja prática revela um sistema que favorece aqueles que podem pagar, deixando para trás a população mais vulnerável.
O jornal Diário do Nordeste já denunciou casos de imperícia e negligência nos hospitais de Sobral, onde pacientes esperam meses por uma consulta, apenas para serem atendidos rapidamente e, muitas vezes, de forma insuficiente. A mesma elite que enaltece o SUS nos discursos deixa a população na mão e desvia os casos mais lucrativos para clínicas e hospitais privados. O que temos aqui é uma “perversão seletiva”, um mecanismo em que os recursos e as melhores práticas são reservados para aqueles que têm condições financeiras, enquanto os outros são empurrados para o sistema público desgastado e negligenciado.
A crítica não é apenas ao estado das instituições, mas também ao modelo econômico e de saúde em si, que reproduz um viés de acúmulo e exclusão. A elite médica em Sobral – e no Ceará em geral – representa um microcosmo do sistema neoliberal, que sequestra o discurso de cuidado, usando-o como fachada, enquanto o verdadeiro objetivo é o acúmulo de recursos e poder. Essa alienação, criticada por Sadie Plant, reflete uma prática tão desumanizada que o ser humano deixa de ser visto como uma pessoa e se torna apenas mais um número no balanço.
Portanto, a questão não é apenas de imperícia ou descuido, mas de um modelo estrutural que privilegia o lucro em detrimento da vida humana. O discurso vazio de empatia e o viés supostamente humanitário desta elite cearense não são nada mais que uma fachada, um véu que esconde um sistema de saúde excludente, que deixa os mais vulneráveis sem assistência. É hora de questionar essa estrutura e exigir uma reformulação que, ao invés de reforçar a desigualdade, traga de volta a dignidade ao atendimento médico em Sobral e em todo o Ceará.
Esse cenário de contradição abre portas para que candidatos da direita aproveitem o descontentamento popular com a “esquerda” representada pela família Gomes. Ao destacar as falhas e o conservadorismo disfarçado do grupo, eles ganham terreno entre eleitores que buscam alternativas para a administração pública e uma reforma mais efetiva dos serviços de saúde e educação. Esse ciclo de poder se perpetua, enquanto os cidadãos de Sobral e do Ceará se encontram entre um governo que promete inclusão e uma oposição que denuncia o elitismo enraizado, mas que pode, igualmente, não oferecer soluções reais para o problema estrutural.
Texto: Clara Santos