In Dubio Pro Reo: Justiça ou Impunidade? E para Mulheres Indígenas?

Foto: Bruna Nazario
Compartilhe

Este texto explora os fundamentos constitucionais desse princípio

No Brasil, o princípio do in dubio pro reo tem como objetivo garantir que réus não sejam condenados sem provas substanciais. Contudo, em casos de assédio e abuso sexual, onde a produção de provas é especialmente complexa e a palavra da vítima frequentemente a única evidência, esse princípio pode gerar barreiras adicionais para a efetivação da justiça. Este texto explora os fundamentos constitucionais desse princípio e argumenta que, em situações de crimes sexuais, sua aplicação se torna inconstitucional, pois viola direitos fundamentais das vítimas, como a dignidade e a proteção à integridade física e psicológica.

O princípio jurídico “in dubio pro reo”, que garante ao réu o benefício da dúvida, é um dos pilares da justiça penal. No entanto, sua aplicação em casos de assédio e violência sexual tem gerado discussões acaloradas no Brasil. Ao passo que protege o direito de não condenar inocentes, ele se torna um escudo de impunidade em casos de assédio, onde frequentemente faltam provas materiais, resultando em uma contradição flagrante: a presunção de inocência dos acusados pode implicar na presunção de mentira das vítimas, subvertendo os direitos fundamentais destas ao devido processo e à proteção contra abusos.

Em crimes sexuais, especialmente aqueles que envolvem assédio, as dinâmicas de poder e o medo da represália dificultam denúncias e, mais ainda, a coleta de provas. Estudos da ONU Mulheres mostram que, globalmente, cerca de 70% das mulheres sofrem violência ao longo da vida, mas, no Brasil, estima-se que apenas 10% dos casos de assédio são notificados, seja por receio, descrédito ou falta de mecanismos de proteção para as vítimas. A confiança na justiça é mínima, e o impacto do “in dubio pro reo” em casos de assédio sexual merece uma análise crítica e urgente.

Casos de assédio sexual, na maioria das vezes, ocorrem sem testemunhas e provas diretas, apoiando-se, portanto, na palavra da vítima e do acusado. Para mulheres que denunciam abuso, enfrentar o sistema judiciário significa se sujeitar a questionamentos invasivos e, muitas vezes, humilhantes, que colocam sua moral e comportamento em julgamento. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que aproximadamente 50% das vítimas de assédio não denunciam seus agressores por medo de retaliação ou descrédito judicial.

Os tribunais brasileiros, impregnados por estruturas e conceitos masculinistas, raramente favorecem a vítima nesses casos, pois as regras processuais, idealizadas para proteger a sociedade de erros judiciais, são vistas de maneira desproporcional em casos de crimes sexuais. Segundo a pesquisadora Silvia Pimentel, da ONU Mulheres, o Brasil possui um sistema “juridicamente machista”, onde os estigmas culturais frequentemente desqualificam a experiência das mulheres, tomando suas acusações como falsas ou exageradas.

A prática do “in dubio pro reo”, embora essencial em muitos contextos, em casos de assédio sexual costuma ser desvirtuada. Na ausência de provas materiais, o princípio é invocado para absolver suspeitos com o argumento de “falta de evidências sólidas”. Tal prática é uma dupla injustiça: falha em proteger a vítima e favorece o agressor, alimentando a ideia de que a impunidade prevalece em situações onde o assédio é mais difícil de comprovar.

A cultura da descrença na palavra da vítima se intensifica em um sistema onde o “in dubio pro reo” é aplicado de forma acrítica, como se todos os contextos fossem iguais. Para casos de assédio, a diferença é crucial. Estudos da Crown Prosecution Service (Reino Unido), em 2013, concluíam que denúncias falsas representavam aproximadamente 3% das acusações analisadas, enquanto o índice de absolvições por “falta de provas” é assustadoramente elevado. Trata-se de uma deturpação do conceito de justiça, onde o direito à presunção de inocência se torna um privilégio de gênero, afetando principalmente mulheres.

Para enriquecer a análise e incluir a defesa das recentes decisões da Suprema Corte Brasileira em prol da proteção da dignidade da vítima em casos de violência sexual, é importante mencionar a postura do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto à flexibilização do princípio do “in dubio pro reo”. Em muitos casos, principalmente em crimes sexuais contra vulneráveis — como filhos, enteados e parceiros(as) dependentes —, a palavra da vítima ganha relevância devido à natureza clandestina desses crimes e à dificuldade na obtenção de provas materiais. Essa abordagem busca reconhecer a particularidade desses casos e garantir uma proteção mais eficaz às vítimas, cujo sofrimento não pode ser ignorado em nome de uma interpretação rígida da presunção de inocência.

Em 2021, o STF declarou inconstitucional a tese de “legítima defesa da honra” em casos de feminicídio, entendendo que tal defesa, apesar de embasada no direito à ampla defesa no Tribunal do Júri, ofende a dignidade da vítima e perpetua a impunidade em contextos de violência de gênero. Essa decisão não apenas limitou a aplicação de certos princípios constitucionais, mas também destacou a necessidade de que o sistema judiciário considere a dignidade e os direitos humanos fundamentais em sua análise, adaptando a aplicação das normas ao contexto dos crimes em questão.

Mas, além disso, a falta de proteção adequada a grupos vulneráveis, como as mulheres indígenas, revela como o sistema jurídico muitas vezes falha em enfrentar a violência de forma justa e proporcional. As comunidades indígenas relatam diversas formas de abuso por agentes externos, e mesmo dentro das próprias comunidades, os casos são subnotificados, seja por medo, isolamento geográfico ou falta de confiança nas autoridades judiciais. Essa invisibilização de abusos contra mulheres indígenas reflete uma realidade amarga: o sistema ainda precisa reconhecer e combater a desigualdade e o preconceito estrutural que perpetuam a impunidade nesses casos.

Casos de assédio e violência sexual contra mulheres e crianças indígenas no Brasil refletem uma realidade alarmante de violência de gênero, especialmente em regiões de fronteira e em contextos de exploração ilegal, como o garimpo. A Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) indica que essas violências estão intrinsecamente ligadas à invasão e exploração dos territórios indígenas, expondo meninas e mulheres a situações de abuso e violência sexual.

Em média, o Brasil registra cerca de 45 mil casos anuais de abuso sexual infantil, onde as vítimas são predominantemente meninas, embora a falta de dados específicos sobre crianças indígenas em muitos estados dificulte uma análise mais detalhada e a criação de políticas públicas adequadas para essas populações.

Casos como o de Raíssa Kaiowá, de 11 anos, abusada e morta no Mato Grosso do Sul, e Daiane Kaingang, de 14 anos, vítima de violência sexual no Rio Grande do Sul, são emblemáticos. Em comunidades isoladas, as dificuldades de acesso a serviços de denúncia e proteção são agravadas pelo medo e pelo estigma. Além disso, muitas vítimas hesitam em denunciar por temor de represálias e pela estrutura cultural das comunidades, onde a violência sexual ainda é tabu, limitando o apoio institucional disponível.

A Constituição Federal de 1988 estabelece o direito à proteção e à dignidade humana como um dos princípios fundamentais, mas, ao interpretar o “in dubio pro reo” de maneira rígida em casos de assédio, o sistema jurídico brasileiro está violando esses direitos constitucionais das vítimas. A função do Estado é proteger o cidadão, e as vítimas de assédio são, na maior parte das vezes, desprotegidas por um sistema que as empurra para o descrédito e ao silêncio. Essa contradição mostra que, em casos de assédio, o “in dubio pro reo” pode, sim, ser inconstitucional.

Em uma sociedade que valoriza a igualdade e a justiça, é fundamental que princípios como o da dúvida em favor do réu sejam interpretados de maneira sensível aos contextos e, sobretudo, à realidade. Ignorar as especificidades dos casos de assédio significa validar um sistema que perpetua a violência e a injustiça. O princípio deve existir, mas não como justificativa para sacrificar os direitos das vítimas em prol de uma visão limitada de justiça.

A necessidade de reformar o Código Penal brasileiro para abranger com rigor e sensibilidade os casos de assédio sexual é premente. É essencial que sejam criados mecanismos legais que protejam as vítimas e que o “in dubio pro reo” seja aplicado com uma ponderação contextual. A lei deve evoluir para não ser um escudo para abusadores, mas um instrumento de justiça para todos.

Portanto, para que o Brasil avance em direção a uma sociedade verdadeiramente justa, é essencial que se crie um arcabouço jurídico que considere as especificidades dos crimes de violência sexual, sobretudo em relação às vítimas mais vulneráveis, e que o princípio do “in dubio pro reo” seja aplicado com ponderação. Essa reinterpretação não busca diminuir o direito à defesa, mas sim fortalecer a proteção de todos os cidadãos, particularmente aqueles que mais sofrem com a estrutura desigual de poder e a falta de amparo social e legal. 

O sistema judicial deve garantir que vítimas de assédio sejam ouvidas e amparadas e que a palavra da vítima tenha o peso devido. A implementação de reformas que prevejam formas de prova alternativas e formas de acolhimento, como câmaras especializadas e treinos de sensibilidade para os agentes da justiça, pode ser um primeiro passo. Afinal, uma sociedade verdadeiramente justa é aquela que não sacrifica a dignidade e os direitos de uma pessoa para proteger as falhas de um sistema patriarcal.

A transformação é, acima de tudo, uma responsabilidade de cada membro da sociedade, para que ninguém mais se sinta compelido a silenciar diante da injustiça.

Você pode gostar...

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Skip to content