O desvirtuamento ético-profissional na sociedade contemporânea: breve análise

Foto: Arquivo/Elza Fiuza/Agência Brasil
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A perpetuação desse desvirtuamento é agravada por um contexto de individualismo neoliberal

A célebre frase de Thomas Hobbes, “O homem é o lobo do homem”, que retrata a natureza humana como selvagem e propensa a atrocidades éticas, nos remete a uma reflexão profunda sobre o desvirtuamento ético nas relações humanas, especialmente no contexto profissional. Para Hobbes, o maior risco que o ser humano enfrenta não é o confronto com as forças naturais, mas o convívio com outros seres humanos. Esta ideia serve como um espelho para a sociedade brasileira contemporânea, onde o desvirtuamento ético se manifesta com frequência, principalmente em esferas profissionais, afetando a vida cotidiana e as estruturas socioculturais, além de culminar em desigualdades socioeconômicas.

Desde a filosofia grega, a reflexão ética se fundamenta na busca por um “agente ético”, ou seja, um indivíduo que age em consonância com a construção da justiça. O filósofo Sócrates, por meio de seus diálogos, instigava seus interlocutores a questionarem suas verdades e buscar uma essência ética. No entanto, a retórica que deveria servir à justiça, muitas vezes, era usada para atender aos interesses de grupos que se valiam da manipulação e da corrupção. Este cenário não parece distante da realidade atual, em que práticas como a corrupção passiva, a propagação de “fake News” e diversos golpes, principalmente na internet, perpetuam um comportamento que desconsidera a ética profissional e institucional. No campo político, a recorrente compra de votos e promessas vazias durante campanhas eleitorais também exemplifica essa distorção. No direito civil, a agilidade dos processos judiciais muitas vezes é determinada pela influência do poder financeiro e institucional, revelando uma hierarquia distorcida onde a justiça e a ética são subvertidas.

A perpetuação desse desvirtuamento é agravada por um contexto de individualismo neoliberal, que fomenta a competição desmedida e a hierarquização social. George Simmel, filósofo e sociólogo alemão, descreve o fenômeno do “comportamento blasé”, onde a indiferença e a apatia em relação aos outros refletem a alienação e a incapacidade de reagir aos estímulos sociais com as energias necessárias para mudanças positivas. Esse comportamento está diretamente ligado à perpetuação das desigualdades sociais e ao fortalecimento de uma ética profissional cada vez mais distante dos princípios de justiça e solidariedade. A análise dos filósofos da Escola de Frankfurt, Max Horkheimer e Theodor Adorno, complementa essa perspectiva ao apontar que a “razão instrumental”, que trata a sociedade como um objeto de dominação, sustenta um modelo de poder elitista, no qual a ética profissional se submete aos interesses financeiros e ao status social.

Nesse contexto, os pensadores contemporâneos Giorgio Agamben, Jürgen Habermas e Georges Canguilhem oferecem soluções práticas que podem contribuir para a superação do desvirtuamento ético-profissional e a construção de uma sociedade mais justa e ética. Agamben, em sua obra “O Reino e a Glória”, sugere a necessidade de uma nova forma de governança que reconheça a capacidade do indivíduo para a decisão ética, independentemente de normas impostas por estruturas de poder. Ele propõe a ideia de uma “comunidade política” que não seja regida por um sistema de exceção, mas que envolva uma participação ativa do cidadão nas decisões coletivas. Essa perspectiva pode ser aplicada no campo profissional, incentivando um modelo de governança corporativa que promova a transparência, a equidade e o compromisso ético. Empresas e instituições podem criar ambientes de trabalho que priorizem a ética e a solidariedade, com espaços para diálogo aberto, participação ativa de todos os colaboradores e a busca constante pela justiça, afastando-se da lógica puramente instrumental que prioriza o lucro sobre a dignidade humana.

Jürgen Habermas, em sua teoria da ação comunicativa, enfatiza a importância da comunicação livre e racional para a construção de uma sociedade ética. Para Habermas, a deliberação pública, onde indivíduos possam trocar argumentos de maneira livre e igualitária, é fundamental para a formação de consensos que levem à construção de uma ética comum. No âmbito profissional, sobretudo, na esfera política, isso se traduz na necessidade de criar espaços de debate e discussão sobre práticas éticas, onde diferentes pontos de vista possam ser apresentados e avaliados com base na razão e no respeito mútuo. Isso poderia ser implementado em ambientes corporativos por meio de comitês éticos, treinamentos contínuos e políticas de retorno que incentivem a reflexão crítica sobre as ações e decisões no cotidiano profissional.

Georges Canguilhem, por sua vez, em sua obra sobre a epistemologia da biologia, destaca a importância de compreender a saúde e o bem-estar, como valores que devem guiar a prática profissional, não apenas em áreas como a medicina, mas em todas as profissões. Canguilhem argumenta que, para manter a integridade ética em qualquer campo, é necessário considerar o impacto das ações no bem-estar coletivo. No contexto corporativo, isso poderia ser traduzido pela promoção de práticas que não apenas busquem o lucro, mas que considerem as consequências sociais e, urgentemente, ambientais das decisões empresariais. A ética profissional, portanto, não se limita às normas do campo em questão, mas deve englobar uma perspectiva holística que leve em conta o bem-estar geral da sociedade.

Assim, o desvirtuamento ético-profissional na sociedade contemporânea é um fenômeno complexo que se manifesta tanto nas relações interpessoais quanto nas instituições. Embora tenha ocorrido um avanço significativo no campo dos direitos civis e no progresso científico, a instrumentalização da razão e o comportamento blasé continuam a propagar desigualdades e a enfraquecer os alicerces éticos das relações profissionais. Para reverter esse quadro, é necessário um esforço conjunto para promover práticas de governança transparentes e participativas, criar espaços de deliberação ética e considerar o impacto das ações profissionais no bem-estar coletivo. O uso consciente e democrático do conhecimento, como defendido por Simmel, Agamben, Habermas e Canguilhem, é fundamental para reverter o desvirtuamento ético e garantir um desenvolvimento verdadeiramente humano e justo para todos.

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