Maioria das mulheres negras do Brasil conhece pouco a Lei Maria da Penha
Os dados foram revelados pelo levantamento do DataSenado e Nexus, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência
No Brasil, um dado alarmante ecoa sobre as vozes de 13.977 mulheres negras entrevistadas em uma pesquisa nacional: em cada dez, oito conhecem pouco ou nada sobre a Lei Maria da Penha, principal ferramenta legal de combate à violência de gênero. Esse desconhecimento, revelado pelo levantamento do DataSenado e Nexus, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, reflete uma lacuna que vai além da ignorância jurídica. Ele traduz, também, uma falha estrutural na proteção e na informação às mulheres que mais sofrem com a violência doméstica e familiar.
A pesquisa, realizada entre agosto e setembro de 2023, destacou que 70% das entrevistadas desconhecem as medidas protetivas previstas em lei. Para muitas delas, a legislação é uma promessa distante, sem efeito prático no enfrentamento ao ciclo de abusos. Karla, nome fictício de uma das entrevistadas, simboliza essa descrença. Ela enfrentou anos de violência física, sexual, psicológica e patrimonial por parte do ex-companheiro, mas as tentativas de se proteger foram frustradas por um sistema judicial que hesitou em conceder medidas protetivas efetivas.
Mesmo após registrar 18 boletins de ocorrência e recorrer à Justiça, Karla obteve apenas uma medida protetiva, que determinava distância mínima de 600 metros entre ela e o agressor. Essa determinação, no entanto, era facilmente violada e só parecia ser cumprida na presença da polícia, que, muitas vezes, demorava horas para atender seus chamados. Enquanto isso, a sensação de desamparo era reforçada por agentes de segurança e magistrados que minimizavam a gravidade das denúncias.
Apesar de 71,87% das medidas protetivas concedidas pela Justiça terem sido aprovadas integralmente entre 2020 e 2023, 6,8% foram indeferidas e outras 8,47% concedidas parcialmente, um fator que especialistas apontam como agravante para a perpetuação da violência. Karla viveu na pele as limitações desse sistema, sentindo-se encurralada pela negligência de quem deveria protegê-la.
Além da aplicação da lei, o estudo expõe lacunas na comunicação e no acesso aos serviços de apoio. Embora 95% das entrevistadas conheçam as Delegacias da Mulher, apenas 38% têm conhecimento da Casa da Mulher Brasileira, equipamento que reúne múltiplos serviços de apoio às vítimas. Com dez unidades em funcionamento no país, sua atuação é essencial, mas insuficientemente difundida entre aquelas que mais necessitam de amparo.
A pesquisa ainda revelou que quase metade das mulheres negras entrevistadas (49%) acredita que a Lei Maria da Penha protege apenas de forma parcial, enquanto 20% avaliam que ela não tem qualquer efeito prático. Esse ceticismo está diretamente ligado à sensação de abandono que muitas vivenciam, somando traumas às violências já sofridas.
Apesar das falhas institucionais, a rede de proteção às mulheres apresenta avanços. Serviços como o Ligue 180 e os centros de assistência social (Cras e Creas) são reconhecidos por uma parcela significativa das mulheres negras, mas ainda há muito a ser feito para ampliar o alcance e a efetividade dessas ferramentas.
Karla conclui seu desabafo com um misto de dor e indignação: “Sugeriam que eu fugisse, como se o problema fosse eu. Abandonar minha casa parecia ser a única solução para garantir minha segurança, enquanto o agressor continuava livre para seguir com a vida.” O relato dela é um chamado urgente à reflexão sobre as promessas e as falhas da Lei Maria da Penha, e sobre como um sistema mais eficiente e humano pode transformar o destino de milhares de mulheres.