A crescente mortalidade feminina em razão do aborto
E o questionamento civil sobre o papel da medicina preventiva, suas responsabilidades legais e democratização do acesso
O debate sobre o aborto no Brasil é, acima de tudo, uma questão de saúde pública. A mortalidade feminina causada pela interrupção insegura da gravidez cresce exponencialmente, afetando principalmente mulheres pobres, negras e periféricas, vítimas de um sistema de saúde que falha em oferecer cuidados preventivos e contraceptivos adequados. A desinformação disseminada e a inércia das políticas públicas contribuem diretamente para esse quadro desolador. Enquanto setores religiosos e ideológicos pautam o discurso, vidas são ceifadas pela ausência de um sistema de saúde que realmente funcione para as mulheres.
A medicina preventiva deveria atuar como a primeira barreira contra a mortalidade relacionada ao aborto, oferecendo contracepção eficaz e educação sexual de qualidade. Contudo, o Brasil falha em democratizar o acesso a esses serviços. Mulheres em comunidades periféricas muitas vezes não têm acesso a métodos contraceptivos, resultando em gravidezes indesejadas que são levadas, muitas vezes, a abortos clandestinos. Essa realidade é um reflexo direto da inoperância e incompetência da medicina preventiva, que deveria ser o pilar fundamental para evitar a necessidade do aborto. Autoras como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro já denunciavam, em seus escritos, a intersecção entre racismo e sexismo na saúde pública, pontuando como a desigualdade racial agrava a violência reprodutiva.
Casos de mulheres que sofrem traumas profundos por estupro e violência doméstica, e que têm suas vidas salvas pela interrupção legal da gravidez, ilustram como o aborto seguro é um instrumento de proteção à vida. Dra. Débora Diniz e Dra. Eleonora Menicucci têm, ao longo de suas trajetórias, argumentado que impedir o acesso ao aborto em casos como esses perpetua a violência e coloca a saúde física e psicológica das mulheres em risco. Em suas obras, apontam como a criminalização não reduz o número de abortos, apenas empurra as mulheres para procedimentos inseguros.
A introdução da ideologia pessoal de alguns médicos nas decisões clínicas é um obstáculo ético grave. Colocar crenças individuais acima do bem-estar da paciente é uma prática que fere os princípios básicos da medicina. O médico Cristião Rosas, defensor da humanização nos cuidados ginecológicos, pontua a urgência de que profissionais da saúde sejam capacitados para realizar abortos seguros, de forma humanizada, sem julgar ou punir moralmente as mulheres que optam por esse procedimento. A medicina deve, em sua essência, proteger a vida, e isso inclui proporcionar um aborto seguro quando necessário. A falta de acesso a esse direito transforma uma escolha pessoal em uma sentença de morte para muitas.
A legalização do aborto é, portanto, um passo crucial para garantir não apenas a autonomia das mulheres, mas também para combater a mortalidade e a desigualdade social no Brasil. Nísia Floresta, pioneira do feminismo no Brasil, já defendia o direito das mulheres sobre seus próprios corpos. Angela Davis, em seus estudos interseccionais sobre gênero, raça e classe, argumenta que o aborto é uma questão de justiça social e econômica, e que a descriminalização é um imperativo para a emancipação feminina.
A democratização do acesso à medicina preventiva e à legalização do aborto é uma questão de saúde pública que, se devidamente implementada, pode impactar positivamente a economia brasileira. Manuela D’Ávila e Jandira Feghali defendem que o aumento da participação feminina no mercado de trabalho é diretamente ligado ao controle sobre sua própria reprodução. Quando as mulheres têm acesso à educação sexual, métodos contraceptivos e ao aborto legal, a incidência de gravidezes indesejadas diminui, o que, por sua vez, reduz a evasão escolar e a interrupção de carreiras profissionais, fenômenos comuns entre jovens mães.
Um estudo recente do IBGE, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, destacou indicadores críticos de saúde reprodutiva e os impactos no mercado de trabalho, inclusive para adolescentes grávidas. Os dados mostraram que a gravidez precoce está associada à evasão escolar, perpetuando ciclos de pobreza e desigualdade no Brasil. Atualizando com dados recentes, o Brasil enfrenta um aumento preocupante nas taxas de mortalidade materna, e o aborto inseguro continua sendo uma das principais causas de morte, especialmente entre mulheres negras e de baixa renda. A taxa de mortalidade materna no Brasil era de 55,82 mortes por 100 mil nascidos vivos em 2022, sendo o aborto uma causa significativa, especialmente em áreas menos favorecidas e com menor acesso à medicina preventiva. Além disso, apenas 50% das mulheres têm acesso adequado ao pré-natal, o que agrava o problema da falta de assistência médica em regiões periféricas e rurais, contribuindo para o aumento dos riscos de complicações na gravidez e no aborto.
A falta de acesso à medicina preventiva e a subutilização de métodos contraceptivos, especialmente em regiões mais pobres, continua a ser um fator determinante. Mesmo com programas como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, o Brasil ainda está longe de atingir uma cobertura adequada, com 90% das gestantes tendo menos consultas pré-natais do que o recomendado.
Com esses dados, fica claro que a melhoria do acesso à medicina preventiva e a legalização do aborto seguro são passos necessários para reduzir a mortalidade feminina e promover justiça social no Brasil.
A maioria das adolescentes que engravidam são forçadas a abandonar a escola, perpetuando o ciclo de pobreza. A gravidez precoce é uma das principais causas da desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Além disso, a pobreza menstrual – outro tema crítico para a saúde pública – é mais um reflexo da falta de políticas eficazes de saúde preventiva. A inclusão de produtos menstruais gratuitos em escolas e unidades de saúde nas periferias, somada à educação sexual, pode diminuir substancialmente o número de jovens meninas que veem suas oportunidades de futuro destruídas.
Por fim, a legalização do aborto, acompanhada da capacitação de profissionais e da evolução dos métodos de interrupção da gravidez, poderia ser um caminho para garantir a redução da dor e do sofrimento para todos os envolvidos. A tecnologia médica já avançou significativamente, e com o investimento correto, procedimentos de aborto poderiam ser realizados de forma mais segura, inclusive com a possibilidade de utilizar órgãos fetais para estudos em neonatologia, como sugerem recentes debates científicos.
Esse conjunto de ações – legalização do aborto, democratização do acesso à medicina preventiva e ginecológica, e educação sexual – não apenas salvaria vidas, mas também contribuiria para o crescimento econômico e social do país. O Brasil precisa urgentemente rever suas políticas de saúde reprodutiva, garantindo que as mulheres possam exercer seu direito de escolha sem correr risco de morte, interrompendo ciclos de pobreza e promovendo um futuro mais justo e igualitário. Como apontam Sueli Carneiro e Carolina Maria de Jesus em seus textos, o direito ao corpo e à saúde é um dos passos mais importantes para a emancipação completa da mulher, principalmente as que são vítimas do sistema de desigualdade que impera no país.