Ciro, o cirineu de araque
Ao reconhecer seu desgaste entre os próprios cearenses, Ciro deu uma de cireneu, o romano que ajudou Jesus a levar a cruz. Para o vexame de figurar em terceiro lugar, até no Ceará, deu uma explicação bem cirista. Segundo ele, foi a defesa que ele faz do projeto ( inclui os desgastantes Cid e Camilo), que lhe tirou a unanimidade. Disse isso para se mostrar magnânimo, que não agiu em proveito próprio, mas acabou queimando o irmão e o petista de sua predileção.
A explicação põe por terra a fama da eloquência e do vigor argumentativo de outros tempos. Sua afamada prestidigitação verbal já não ilude, virou truque banal. Ciro já não é consenso nem na República de Sobral, pois em empate técnico com o presidente da República. Isso pode estar afetando a agudez de seu raciocínio
Imagino quão difícil foi reconhecer a falta de apoio mesmo no território que sempre lhe foi pródigo em votos. Deve tudo ao Ceará, costuma dizer. Político precoce, a muitos encantou com sua fala fácil e verve inflamada. Campeão de votos para legislativos e alta aprovação de governos tanto municipal quanto municipal, o sobralense de Pindamonhangaba tem uma larga folha de serviço prestado até se encantar com o planalto.
Cumpriu o papel de ministro tampão, ao assumir a brecha exposta pelo então ministro Rubens Ricupero, que revelou nas parabólicas uma obviedade, a de esconder o ruim e mostrar o bom. O próprio Ciro já usara o estratagema quando escondeu um surto de cólera no Ceará enquanto era governo do Estado, coisa que ele confessou numa entrevista de TV.
Ciro já exibia uma carreira meteórica como poucos. Jovem deputado estadual, aliou-se a Tasso Jeireissati, que lhe fez prefeito de Fortaleza e governador do Ceará. Não chegou ao fim do mandato e foi catapultado ao seu primeiro cargo federal, logo um dos mais importantes, ministro da Fazenda. Ainda achava pouco e queria avançar. Ao infinito e além.
Ciro foi governador quando Collor presidente. Os dois estavam juntos em Juazeiro do Norte, quando o caçador de marajás revelou que tinha “aquilo roxo”. Os dois tinham muito em comum. Jovens nordestinos, destemidos, desafiadores, mesma estatura. Quando Collor soçobrou diante das maracutaias de PC Farias e dos despachos da Casa da Dinda, Ciro se imaginou o sucessor.
O episódio das parabólicas parecia um golpe de sorte que veio dos céus. Mas no meio do caminho tinha uma pedra. Pedro Malan assume o seu lugar no governo de FHC, alijando Ciro Gomes, obscurecido pelo brilho do Plano Real. Descontente e ressentido não apenas por ter sido posto de lado, mas por entender que FHC tinha usurpado o lugar que lhe era de direito e migra para a oposição.
FHC emplaca a emenda da reeleição, e Ciro se lança pela primeira vez à presidência da República. Foi triturado pelo tucano, que ganhou no primeiro turno. Ficou em terceiro lugar, abaixo de Lula.
No pleito seguinte, parecia ser a vez de Ciro. Ele que já mudara de partido três vezes, estava de nova esposa. Trocara de Patrícias, deixando Saboya por Pillar, a linda e talentosa atriz global. Foi uma atração extra e também sua perdição. Quando um repórter insinuou que a atriz global poderia ser o pilar de sua campanha, ao perguntar sobre o papel dela, o espírito de Collor subiu do “aquilo roxo” e foi expelido pela boca. “Minha companheira tem um papel fundamental: ela dorme comigo.”
Quando Lula ganha o poder, Ciro, mais uma vez, brilha na defesa da transposição do Rio São Francisco, que só veio se viabilizar no governo Bolsonaro. A tempo, caiu fora da nau petista, abarrotada de escândalos de corrupção. Ao se distanciar de Lula, sua carreira solo foi seguidamente boicotada pelo caudilho petista, mesmo quando este puxava cana numa razoável cela da PF, em Curitiba.
Mais uma vez, o Ícaro do agreste sonhou alto. Com Lula fora da disputa, entendeu que seria o catalizador dos votos de esquerda. O progressista sem mácula de roubalheiras. Sonho de Alice. Lula mandou Hadad oferecer a vice. Imagina! Partiu para o confronto, já se achando no segundo turno. Mas eis que outro personagem assumiu o protagonismo. Bolsonaro parecia um avatar de Ciro, um Collor revisitado. E passou a perna em todos.
Fora do segundo turno, ressabiado e ressentido com os petistas, lavou as mãos. Mas preferiu as águas do Sena. Foi flanar na rive gauche parisiense. E só voltou para fazer oposição ao novo governo.
Personalidade em pêndulo, oscilava, de forma bipolar, na sua relação com Lula, a quem qualificava hora de vítima, hora de bandido. E passou a descer a lenha tanto em Bolsonaro quanto no ex-presidi´ário, achando que, dessa vez, a sorte não lhe fugiria. Seguindo o manual do marketing, passou a atacar mais ferozmente Lula, pois Bolsonaro estaria garantido no segundo turno.
Mas nada deu certo, encalacrou-se no terceiro lugar. Foi empurrado para o quarto, com a entrada de Moro, a quem passou também a atacar. Quando desmoronou a candidatura do ex-juiz, Ciro volta à antiga colocação, mas ainda mais quebrado que arroz de terceira. Apesar de contar com todo apoio e estrutura do partido, não rompeu a barreira dos dois dígitos. Mesmo assim, encontrava energia nos bons índices que o Ceará lhe proporcionava. Agora, nem isso.
Perdido em si, no seu próprio universo, ele dá reviravoltas na espiral do tempo, para entender em que momento ele perdeu sua identidade, ou o caminho de volta, no labirinto que ele mesmo criou. Um Dédalo jogado a própria sorte, conseguiu escapar de Minotauro. Mas está mais para Ícaro, que tem uma vogal a mais que seu nome, querendo alçar voo, mais e mais alto. Está prestes a se esborrachar no chão.
Prestes a ficar sem mel nem cabaça, pois o poder que até então mantinha no Ceará, com sua grande família, está ameaçado por outro capitão. Desfere pancadas em Lula, numa tentativa de viabilizar sua terceira via no cenário nacional, e os golpes repercutem nos petistas paroquiais, que mantém por um fio a aliança e já acenam insurgência no quintal do coronel.
Ciro é um Bolsonaro, que procura, em vão, se conter para não dar com a língua nos dentes. Já o outro é incontido até nos palavrões. Ambos se assemelham no físico e na personalidade, cabendo a Ciro o verniz cultural, o bem falar e o falso saber sobre todas as coisas. Enquanto Ciro sabe tudo, Bolsonaro, confessa algumas ignorâncias.
Ciro chega a ser boçal em sua pseudossapiência. Repare no timbre da vogal aberta na dicção da palavra “interésses”, como se só ele dominasse a ortoépia, mas é uma prosódia só dele, um idioleto. Soa pernóstica em vez de denotar sabedoria. Ciro, o sabichão, despido de todos os maneirismos, no recôndito de sua intimidade, olha-se no espelho, vê Bolsonaro no reflexo, e soluça: por que não eu?