O AI-5 ESTÁ DE VOLTA
Sob os auspícios do Supremo Tribunal Federal e o patrocínio da Câmara dos Deputados, o espectro do AI-5 ronda o cenário da política brasileira. O ectoplasma que se imaginava eclodir das hostes bolsonaristas, onde costumeiramente era evocado, surgiu dentre as capas pretas da magistratura e mostrou suas garras na calada da noite para calar a voz parlamentar.
As aparições do espírito autoritário estavam cada vez mais recorrentes. Exorcizado na Constituição de 88, não se esvaneceu de vez. Aproveitava-se para voltar das trevas o portal da Lei de Segurança Nacional, muitas vezes chamada de entulho autoritário, mas sem jamais ser rebolado no mato da história. E o STF, a pretexto de combater atos antidemocráticos, usou do autoritarismo e da famigerada LSN.
Com o auxílio luxuoso do Congresso, temos mais um arroubo da senectude transviada.
Histórico
Para os de memória curta ou de pouco conhecimento dos fatos, não custa lembrar como foi parido o AI-5: exatamente para fustigar a liberdade de expressão. Os poderosos de então, emulados agora pelos togados do STF, também se sentiram ofendidos por um inconsequente discurso de ódio de um deputado, ao dizer que os militares poderiam ser armados, mas não amados.
Marcio Moreira Alves, do MDB carioca, apoiou o golpe de 64, mas foi para a oposição desde o primeiro ato institucional. Em setembro de 1968, por ocasião das comemorações do Dia da Independência, discursou pedindo as jovens brasileiras que não namorassem os oficiais do Exército. Indignado, o então ministro da Justiça pediu autorização ao Congresso para processar o deputado. Note: nem a ditadura ousou mandar prender o parlamentar. Como o Congresso não autorizou, o bicho pegou.
Em resposta à negativa do Congresso, o governo editou, no dia seguinte, o AI-5, com poderes de fechar o Congresso e cassar parlamentares federais, estaduais e municipais. Mesmo no regime autoritário, o parlamento foi altivo, sem temer consequências. Agora, na democracia, a Câmara dos Deputados se mostrou genuflexa aos desmandos do STF, que encarcerou um deputado, também por questão de opinião, numa prisão cheia de controvérsias. Apequenou-se o poder emanado do povo diante da hipertrofia do Judiciário.
Ilegalidades
Nem precisa lembrar as idiossincrasias jurídicas, como no caso da prisão em segunda instância, quando a corte suprema atuou como biruta de aeroporto mudando a jurisprudência ao sabor dos ventos circunstanciais. E ainda o inquérito do fim do mundo, inconstitucional desde o berço, em que o mesmo ente figura como vítima, acusador e julgador, deteriorando de vez toda a lógica do sistema acusatório.
Vamos focar no caso presente da prisão do parlamentar por suas palavras e opiniões, e só isso. Prisão eivada de falácias e fragilidades. A fundamentação, mais cheia de furos que a “táubua de tiro ao Álvaro”, inquietou o mundo jurídico.
O STF, guardião da lei, deveria ser a casa da segurança jurídica, das garantias constitucionais, de onde emana a jurisprudência. Neste caso, houve um leque de novidades, subvertendo a tradição pela mais eloquente vanguarda novidadeira. Afinal, chega de tanto conservadorismo! Vejamos essas inovações do Direito criativo, inaugurado pela atual composição da iluminada corte.
Novidades
1)A primeira novidade é a prisão na calada da noite. Mesmo com mandado contra o mais periculoso dos bandidos, a polícia espera o raiar do dia para efetuar a prisão.
2)Não se tinha notícia até então de mandado de prisão em flagrante, uma contradição em si mesmo.
3)Outro ineditismo: mandado de prisão por iniciativa do juiz (de ofício) – sem que haja solicitação da polícia ou do ministério público – durante a fase de investigação.
4)A maior controvérsia, no entanto, é o flagrante alegado por Moraes. Segundo ele, constitui-se flagrante porque o vídeo ainda estava no ar. Só para constar: ainda está no ar o vídeo que o ex-presidente da AO-RJ e ex-deputado federal do PT, Waldir Damous, prega o fechamento do STF. Note que o deputado que agora foi preso, Daniel Silveira, não chegou a tanto. Defendeu a destituição dos ministros, não o fechamento do STF. Pelo mesmo critério, Damous também estaria em flagrante, o que é uma aberração jurídica. Teratologia, como eles costumam qualificar.
5)Por fim, o artigo 53 da CF garante a inviolabilidade dos deputados por QUAISQUER opiniões e palavras. É a garantia da Lei. Se é exagero, se a liberdade de expressão não é absoluta, que se mude a regra. Enquanto ela estiver em vigor, cumpra-se.
Interpretação
A palavra QUAISQUER não carece de interpretação. Evocando o latinório do juridiquês, “In claris cessat interpretatio”. Isto é: quando a norma é redigida de forma clara e objetiva não será necessário interpretá-la. Mas, tratando-se da atual composição do STF, nada é tão claro que não possa ser obscurecido. Quem não se lembra do recente julgamento sobre a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado? Apesar de a norma gritar “vedada a recondução”, cinco magistrados votaram pela possibilidade de reconduzir o que era VEDADO.
Saudosismo
Sem querer ser saudosista, honro a memória daqueles deputados de 68, que enfrentaram os poderosos de então e não autorizaram processar o deputado que falou bobagens. A de agora se revela um simulacro de parlamento que abre mão de suas prerrogativas. Diante das arbitrariedades, optou pela pequenez. Abriu mão de um dos maiores legados da democracia: a inviolabilidade de opinião.
Não custa lembrar que não era o deputado que estava sendo julgado, mas a legalidade da prisão. Ele poderia ser julgado por seus pares, não pelo STF. Os crimes que supostamente cometeu também existiram na boca de parlamentares e até de ex-presidente, sem que ninguém tenha sido preso, nem sequer admoestado. Temos aqui o direito do autor e não o direito do fato. Importa mais QUEM cometeu o crime e não o delito em si. Típico das tiranias, dos regimes despóticos, autoritários, que escolhe quem deve ser punido.
A alma penada do autoritarismo não se cansa de nos assustar. Desta vez, não provém dos coturnos, mas das togas esvoaçantes.
E por falar em saudade, onde anda você?