Deepfake: Uma Breve Análise da Atual Esquerda Brasileira
A proposta deste texto é explorar essas contradições, à luz das reflexões de Mark Fisher
A esquerda política brasileira contemporânea enfrenta críticas de incoerência e hipocrisia que, paradoxalmente, minam seus próprios princípios e sua legitimidade como força transformadora. A proposta deste texto é explorar essas contradições, à luz das reflexões de Mark Fisher, e examinar como a retórica progressista de outrora se tornou um simulacro, um verdadeiro “deepfake” político. Além disso, destaca-se o elitismo presente em muitos setores da esquerda, denunciado por intelectuais como Maria da Conceição Tavares, Edihermes Marques Coelho e Marilena Chaui. Por fim, é importante agregar a essa crítica uma análise dos microfascismos cotidianos que se manifestam dentro da própria esquerda, sob a hegemonia elitista e nepotista.
Mark Fisher, em seu ensaio “Exiting the Vampire Castle“, critica duramente a postura de certos setores da esquerda que se tornaram, em suas palavras, “policiais morais” e defensores de uma política identitária paralisante. Para Fisher, essa esquerda é mais preocupada em punir do que em entender, mais voltada para uma performance moral do que para uma mudança material concreta. O autor britânico denuncia um ambiente onde a crítica é substituída pela condenação, onde o ataque pessoal e o julgamento sumário se tornaram práticas corriqueiras. Se transpusermos essas ideias para o contexto brasileiro, percebemos que grande parte da esquerda nacional se perdeu em disputas internas, cancelamentos e divisões sectárias que enfraquecem a unidade necessária para enfrentar o neoliberalismo e a ascensão de movimentos autoritários.
Outro ponto levantado por Fisher é o fetiche por representatividade simbólica em detrimento de transformações estruturais. Ele afirma que a lógica neoliberal cooptou a linguagem da justiça social para neutralizar o potencial radical da crítica. No Brasil, esse fenômeno pode ser observado na transformação da luta por direitos em um espetáculo midiático, onde partidos e figuras públicas se contentam em ocupar espaços de poder, mas sem questionar profundamente as estruturas que sustentam a desigualdade e a opressão. A celebração de pequenas vitórias simbólicas é frequentemente acompanhada por concessões significativas em pautas econômicas e sociais, reforçando a sensação de que a esquerda não está disposta a lutar até as últimas consequências por suas bandeiras históricas.
Além dessas questões, há uma crítica recorrente ao elitismo presente na esquerda brasileira. Maria da Conceição Tavares já afirmou que “a esquerda não pode se isolar nas torres de marfim acadêmicas”, denunciando a desconexão de muitos intelectuais com as bases populares. A incapacidade de se comunicar de forma efetiva com a classe trabalhadora e com os setores mais vulneráveis da sociedade tem sido um problema crônico. Tavares ressalta que, quando a esquerda abandona o diálogo com o povo, abre espaço para que forças conservadoras ocupem esse vácuo.
Edihermes Marques Coelho critica a superficialidade das pautas elitistas, afirmando que “parte da esquerda se perdeu em discussões acadêmicas herméticas, incapazes de dialogar com a realidade do trabalhador comum”. A ênfase excessiva em debates teóricos muitas vezes afasta a esquerda das demandas concretas e urgentes da população. A falta de uma visão prática e acessível, que fale diretamente às necessidades do dia a dia, gera desconfiança e alienação, afastando as massas que deveriam ser a base de apoio para qualquer projeto de transformação social.
Marilena Chaui também aborda essa questão ao afirmar que “a esquerda se distancia quando se torna ilustrada, mas não popular”. Para ela, o elitismo intelectual afasta a esquerda de suas raízes e limita seu alcance. A preocupação excessiva com a superioridade moral e intelectual acaba por criar uma barreira que impede o diálogo com a maioria da população. Essa postura elitista reflete uma concepção de política que vê o povo mais como objeto de tutela do que como sujeito histórico capaz de protagonizar a transformação social.
Essas críticas ao elitismo dentro da esquerda encontram ecos na análise dos microfascismos cotidianos, um conceito trabalhado por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Para os autores, os microfascismos não são grandes movimentos totalitários, mas sim comportamentos, atitudes e discursos que, de maneira sutil e dispersa, reproduzem práticas autoritárias e repressivas em pequenas escalas, dentro do cotidiano. Quando analisados sob a ótica da esquerda elitista e nepotista, esses microfascismos se manifestam em formas de opressão e exclusão que contrariam o discurso emancipatório.
Na prática, esses microfascismos podem se apresentar na forma de círculos de poder fechados, onde o capital cultural e social é monopolizado por um grupo seleto que se perpetua por meio do nepotismo e do clientelismo. Quem ousa questionar ou divergir dessas práticas é rapidamente marginalizado ou silenciado, revelando uma incapacidade de lidar com a crítica e a pluralidade. A esquerda, que deveria ser o espaço de experimentação democrática e de combate às opressões, acaba por reproduzir, em seu interior, práticas de controle e dominação.
Deleuze e Guattari alertam que esses microfascismos se propagam por meio de relações cotidianas, muitas vezes sob a máscara de uma postura benevolente e progressista. Sob a hegemonia elitista e nepotista, a esquerda brasileira contemporânea se torna cúmplice dessas práticas quando legitima lideranças que perpetuam um sistema de privilégios e exclusões dentro de suas próprias fileiras. A valorização de títulos acadêmicos, a blindagem de figuras influentes e a reprodução de uma lógica hierárquica em espaços de poder dentro da esquerda são exemplos de como esses microfascismos atuam silenciosamente.
A hipocrisia se manifesta, também, na complacência com práticas políticas que outrora seriam alvo de crítica feroz. A flexibilização ética em nome da “realpolitik” tornou-se a norma. A defesa acrítica de figuras envolvidas em escândalos de corrupção, com o argumento de que “não podemos enfraquecer nossos líderes diante do inimigo”, revela uma disposição a sacrificar princípios em nome de conveniências momentâneas. A esquerda, que historicamente se orgulhava de sua postura ética e intransigente frente à corrupção, parece ter incorporado práticas e discursos outrora condenados.
O “deepfake” da esquerda brasileira não é apenas um problema de imagem ou comunicação; é uma crise de identidade e de propósito. Ao ceder às pressões do jogo político convencional, abandonando as bandeiras de transformação radical por uma retórica de conciliação, ela se distancia de suas bases e de suas promessas históricas. Assim, o desafio para a esquerda contemporânea é escapar da armadilha da performance vazia e recuperar a substância de suas críticas e de suas propostas, voltando-se para a construção de um projeto que vá além da superfície e que confronte as estruturas que sustentam o status quo.
Em síntese, como Fisher sugere, é necessário que a esquerda recupere sua capacidade de imaginar o impossível, de propor alternativas viáveis ao sistema atual, sem se deixar capturar pelas armadilhas do moralismo paralisante, das vitórias simbólicas que apenas reforçam a lógica do capital ou de um elitismo que afasta a população. Caso contrário, continuará presa ao papel de figurante em um espetáculo de transformismo político, onde a promessa de mudança não passa de uma ilusão digital, de um “deepfake” que se dissolve na primeira contradição concreta.
Autora: Clara Santos